Neste domingo, enterrei no fundo do meu quintal uma gata que marcou sua presença por no mínimo vinte e três anos; era preta e branca e se chamava Mancha, graças a uma marca escura que tinha no lado esquerdo do seu lábio superior, e que viveu a maior parte de sua vida de um jeito diferente, fora de casa, pelos muros e telhados; sempre que percebia nossa aproximação ao voltarmos para casa depois de um período de ausência, vinha ao nosso encontro, recebendo-nos e acompanhando-nos entre meneios e brincadeiras por cima dos telhados das garagens da rua até que chegássemos à nossa casa; por mais que tivéssemos tentado colocá-la para dentro, dando-lhe um lar, nunca conseguimos essa proeza - a não ser de uns dois anos para cá - e mesmo assim, por vontade dela, como que nos intimando com um sonoro cheguei para ficar! E ficou mesmo porque, daí em diante, instalou-se de tal forma que só saía para tomar o seu solzinho.
Seguindo a lógica da tabela de correspondência de idades entre felinos e humanos, ouso afirmar que a vovó (como a chamávamos) partiu para o outro plano com aproximadamente cento e dois anos de existência - é muito tempo nas costas, ou melhor, no dorso!
Seu final de vida foi marcado por uma total surdez que, por sua vez, era compensada por um olfato refinadíssimo; como passou práticamente 9/10 de sua existência meio que longe de pessoas, não desenvolveu uma sociabilidade plena, era meio que selvagem e quando se permitia estar conosco (em suas raras visitas), aplicava-nos uns afagos meio que grotescos, espalhafatosos e desengonçados, sem controle, e foi somente depois de sua constante presença conosco que conseguiu, lentamente, uma melhor performance para com suas emoções.
E foi nesse curto espaço de tempo que essa gata coroou sua existência, demonstrando um amor incondicional inquestionável, livre de qualquer interesse mesquinho e/ou interesseiro; simplesmente, ela nos amava e, sendo assim, amou-nos até seu último suspiro - que se deu tão harmoniosamente, que faria inveja a qualquer pessoa que ainda não estivesse convencida da brevidade de sua passagem por aqui...
Vez ou outra, escuto algumas pessoas proclamando um "mande amor incondicional para esta ou aquela pessoa" como se fosse a coisa mais fácil de se fazer! Com o passar do tempo, acabei concluindo que a energia do amor incondicional foi dada a pouquíssimas almas evoluídas que por aqui passaram - Cristo, Buda, São Francisco, entre outras, que o digam...
Os animais irracionais amam e se dedicam aos seus donos desprovidos de toda e qualquer relação interesseira e/ou mesquinha; não roubam, não estupram, não traem, não matam e, também, não esperam pelo retorno desse amor abnegado - ao contrário, só contribuem para que as pessoas consigam perceber isso (quando percebem) através da leveza de uma troca no dia a dia, o que acaba sendo uma dádiva a quem deles toma conta e cuida, e isso, talvez, lhes permita uma reflexão maior e melhor sobre esse processo de troca de carinho e, vez ou outra, faça com que uns e outros consigam rever sua conduta numa espécie de autoavaliação, como se a evolução pessoal acontecesse em doses homeopáticas, eu diria.
Fico impressionado como essa gatinha marcou seu território em nosso lar e, consequentemente, em nossas vidas - é como se ainda estivesse conosco, dando sinais de sua presença. Sinto-me feliz por ter compartilhado momentos de amor e carinho com nossa Mancha, sabedor da reciprocidade descompromissada que existiu nessa relação...
Seria extremamente gratificante e perfeito se todos nós, sem exceção, conseguíssemos fundamentar nossos atos cotidianos espelhados na grandeza ímpar dos animais, sem pretender, com isso, incorrer numa pieguice fora de hora - gratificante, por me dar a certeza de que as sementes deixadas pelo tão propalado Cristo, há mais de dois mil anos atrás, realmente vingaram e germinaram; perfeito, porque isso justificaria a prova cabal de sermos chamados filhos de Deus...
Seria - futuro do pretérito!
Obs.: Esta foto da Mancha foi tirada durante seu último ano de vida.